
Friedenreich não foi apenas o primeiro craque brasileiro, e reconhecido como tal na época, desde que Charles Milles trouxe da Inglaterra duas bolas de couro, um uniforme completo e o desejo de difundir pelas bandas de cá um esporte que começava a ganhar corpo na Europa, isso ainda na última década do século XIX. Ele é um personagem extremamente marcante da história do futebol brasileiro, a qual se confunde com a sua própria trajetória. Seus 26 anos de carreira contemplam o estágio inicial desse jogo no país, incluindo a fase em que apenas os gringos, brancos e riquinhos viam a cor da bola, literalmente, passando para o momento em que negros, pobres e desdentados começaram a entrar em campo, e chegando até o início do profissionalismo.
A constituição genética de Fried era um pouco disso. Filho de um bem-sucedido comerciante alemão e de uma ex-escrava brasileira, o garoto transitava sem restrições nos clubes de grã-finos paulistanos, embora fosse visto com certas reservas pela cor mais escura da pele e cabelo crespo alisado, assim como batia pelada no subúrbio com os menos favorecidos, onde também não faltava quem jurasse que aquele garoto de olhos verdes e cabelos crespos alisados era um filhinho de papai.
Mas o cara jogava muita bola. Combinando força física com velocidade, dribles curtos com ginga, improviso e malícia, foi construindo um repertório de jogadas que viriam a ser conhecidas, anos mais tarde, como a escola brasileira de futebol.
Aos 18 anos começou, de fato, sua carreira, no Ipiranga. Dois anos depois já se tornava artilheiro do Campeonato Paulista e era convocado pelo Paulistano, o grande time de São Paulo, para compor um combinado que disputaria um amistoso contra a já fortíssima seleção argentina. Depois de iniciar a partida perdendo por 3x0, os brasileiros conseguiram reagir e viraram para 4x3.
Um dos gols foi de Fried, que viria a ser personagem central de momentos históricos do futebol nacional, como a primeira vitória da seleção brasileira, organizada pela Confederação Brasileira de Futebol, contra o time profissional inglês do Exeter City, por 2x0, em 2014. Assim como fez parte da equipe que conseguiu a primeira vitória no exterior, novamente contra a Argentina.
Cinco anos mais tarde, no Campeonato Sul-americano, Friedenreich ganharia o status de ídolo nacional, carregado nos braços pelos torcedores no final da competição, com direito a exposição de sua chuteira direita em uma conhecida joalheria do Rio de Janeiro. Antes disso, fez gols, deu dribles e passes precisos que levaram o Brasil para a final contra o Uruguai.
Para ver o país campeão de um torneio continental pela primeira vez, os torcedores esgotaram rapidamente os ingressos para o jogo no então estádio do Fluminense. O 0x0 sobreviveu ao tempo regulamentar e os primeiros 30 minutos de prorrogação. Como previa o regulamento, uma segunda fez-se necessária.
Logo no começo, finalmente, veio o gol. O gol de Fried, pegando de primeira, com o pé direito, na meia lua, uma bola socada pelo goleiro uruguaio. O futebol brasileiro viveria seus primeiros minutos intermináveis, 27 para ser mais exato. Até o apito derradeiro do juiz e a invasão de campo do torcedor carioca, que logo buscou o herói do título para leva-lo nos ombros pelas ruas da cidade numa comemoração que invadiu a madrugada. O futebol nacional ganhara o seu primeiro título internacional e o seu primeiro ídolo. Fried ganhou, da imprensa uruguaia, um apelido: El Tigre.
Rapidamente, a fama de El Tigre foi crescendo e chegou a outro continente, o europeu. Três anos depois do título sul-americano, o Paulistano programou uma excursão que se iniciaria na França e Friedenreich era seu convidado de honra. Diante da seleção francesa, o Paulistano meteu 7x2, com El Tigre sendo responsável por três gols. Em resumo, os brasileiros venceram oito das nove partidas disputadas na França e Suíça e Fried foi o artilheiro com 11 gols marcados.
Os jornais franceses não economizaram nos elogios ao time do Paulistano e, principalmente, ao primeiro ídolo nacional. A repercussão da campanha do clube paulista chegou ao país via telex e, pela primeira vez, o futebol uniria torcedores de diversas partes do Brasil, separados pela distância, dificuldade de comunicação e bairrismo, numa comemoração só. O navio trazendo a delegação do Paulistano foi recebido com festa no Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos.
Fried ganharia ainda três títulos paulistas, dois pelo Paulistano, e um pelo São Paulo, clube que ajudaria a fundar. Não chegou a disputar a Copa de 1930, no Uruguai, porque o futebol brasileiro vivia um momento de transição entre o amadorismo e o profissionalismo e os cartolas não se entenderam na hora de forma uma seleção nacional. O que embarcou para Montevidéu foi um combinado carioca. De paulista apenas Arakén Patusca.
Para conhecer mais da história do nosso primeiro craque, três indicações de leitura:

1) O Tigre do futebol (DBA), de Alexandre Costa, que dentre outros méritos sobressai um rigoroso trabalho de pesquisa que corrigiu um erro: o de que Friedenreich teria marcado mais gols que Pelé. O livro traz um inventário com todos os 561 jogos disputados por Fried e os seus 554 gols marcados. Em números brutos, bem abaixo do total de vezes que o 10 do Santos e seleção balançou as redes. Porém, a média de El Tigre supera a do Rei: 0,987 x 0,931 por partida.
FICHA TÉCNICA
O Tigre do futebol
Alexandre Costa
DBA Editora (1999)
112 páginas

2) Fredenreich, a saga de um craque nos primeiros anos do futebol brasileiro, de Luís Carlos Duarte, que foi lançado após O Tigre do futebol e escapa do mito referente ao número de gols de Fried, contextualiza bem como foi o início do futebol no país e o surgimento do seu primeiro jogador excepcional.
FICHA TÉCNICA
Friedenreich, a saga de um craque nos primeiros anos do futebol brasileiro
Luís Carlos Duarte
Editora Bella (2013)
256 páginas

3) Gigantes do futebol brasileiro (Civilização Brasileira), dos jornalistas João Máximo e Marcos de Castro, é uma espécie de enciclopédia com os perfis dos maiores jogadores do futebol nacional e, como não poderia ser diferente, Fried dá o pontapé inicial entre os craques. Detalhe: na sua primeira edição (1965), os autores embarcaram nos então números oficiais de gols do artilheiro. Erro corrigido na reedição, em 2011.
FICHA TÉCNICA
Gigantes do futebol brasileiro
João Máximo e Marcos de Castro
Editora Civilização Brasileira (2011)
439 páginas